sexta-feira

bairro da graça II

    (fui à Graça — 44:38:35 minutos a caminhar — e senti-me aliviada pela cerca continuar a ser um porto seguro no meio de um bairro que sempre amei mas que reconheço cada vez menos. gostava de não sentir o que sinto, mas é como se me fossem arrancando pedaços do corpo, e a cada vez mais velocidade, não tem como o coração ficar quieto. a crew hassan que passou a ser um supermercado, o portão do logradouro dos A70/núcleoA70 que continua fechado anos após serem expulsos pela senhoria de olhos postos num hotel, a padaria artesanal com a senhora querida de cabelo curto que eu via todos os dias a caminho do trabalho e que agora é loja de kebab, o meu querido Mortara que foi desventrado e agora se apresenta num nem sei o quê cheio de azulejos de cores pastel que vende beterraba frita a mil euros e eu nem tive coragem de falar com o Gabriel sobre isso (o nosso primeiro date foi lá). queria muito não sentir esta raiva, aceitar que a vida muda, que os lugares se vão, mas sinto cada vez menos que pertenço, ou, pior, que sou forçada a não pertencer. às vezes pergunto-me se será apenas pessimismo, se eu que vejo a vida de outra forma agora, se tudo continua igual e eu que mudei, mas no fundo sei que não, sei que andar por lisboa, pela minha lisboa, é agora como quando esbarramos na rua numa pessoa de quem já gostámos muito e que hoje a sentimos outra. por agora, de volta à alameda, a banda sonora do filme Amélie ecoa pela rua e eu tento acreditar que a esperança ainda existe e ganhar forças para sair à rua em busca de novos pedaços para tentar colar no lugar de onde os outros me forram arrancados. talvez não seja bom sermos feitos de sítios, mas eu não sei ser de outro jeito.)

      

(a graça e a penha  por mim)

(a graça pelo leo, em 2019)

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