uma ninhada de gatinhos apareceu no quintal vizinho como uma lufada de ar fresco; eram cinco e passaram a visitar-nos e, como ninguém cuidava deles para além de uma tigela com comida e de um balde com um cobertor, onde dormiam, demos-lhes uns carinhos e cuidámos deles na medida do possível, e, em especial, de uma gatinha que parecia não ir sobreviver, a mais pequenina, que acabámos por adotar e que conquistou o coração da minha mãe que jurou nunca mais ter pets quando perdeu uma cachorrinha há décadas. fiquei a semana após o Natal a dar-lhe carinhos, a aquecer-lhe um saco de água quente para passar as noites e a aquecer latinhas para ultrapassar a falta de olfato que o raio da constipação que ela tinha em cima lhe causava. os outros iam e vinham, gatinhos fortes e aparentemente mais saudáveis. um cinza lindo e carinhoso, que só queria festinhas, um amarelinho mais pequenino e receoso, mas que lá ia procurando festinhas, outro amarelinho com uma pancinha e muito apetite e outro cinza clarinho que nunca se aproximou e nunca soube se era gatinha ou gatinho. passados 4 meses, todos eles desapareceram. a gatinha foi eutanasiada após uma paralisia há um mês, talvez por culpa nossa que não soubemos cuidar (e mais minha, por estar mais preocupada com o meu gato e o stresse que ele estava a atravessar por dividir casa com uma pequenina companheira e por não estar presente como devia), ou talvez do destino ou da vet que não viu outra alternativa, não sei. vivo longe e cheguei a casa dos meus pais no dia após ela falecer e desde aí que não consigo andar sem carregar comigo esse sentimento de impotência e de culpa, por ela e pelos irmãozinhos. espreitei no quintal vizinho e vi uma mancha de pelinho amarelo por entre as tábuas da pequena barraca que está a desmoronar-se. chamei e chamei e chamei, mas manteve-se imóvel durante os três dias que espreitei. após isso deixei de o fazer por já não aguentar mais saber que estava ali um dos bichinhos que tive no colo meses antes. os outros, não sei o que foi deles e todos os dias deixo a janela aberta para o caso de um deles voltar. há um vizinho novo no bairro e diz-se que não gosta de gatos. infelizmente, aqui, ainda há quem seja assim e recorra a métodos medonhos para os manter fora dos seus quintais. então, o desespero de não saber o que lhes aconteceu com a quase certeza de um fim desses mete-me o estômago do avesso. e deixa-me com a culpa de ter confiado na esperança de que iriam ficar bem e crescer e fazer as suas vidas ao invés de pegar em todos eles e levá-los para o abrigo municipal de bichinhos para que fossem adotados e recebessem o amor que mereciam.
de há um tempo para cá, a vida têm andado estranha, complicada e sem luz, e ver dois bichinhos pequenos, o cinzinha querido e o pancinha, a jogar à bola com o meu primo como se fossem cachorrinhos, envoltos no riso dele que ecoava no ar, a dar pinotes, trouxe uma luz num mundo que parece cada vez mais sufocante. a obsessão da Minnie (a pequena gatinha) com mãos, a querer sempre mordiscá-las, e o jeito dela de bebé de querer estar sempre no colinho foram coisas a que não soube dar o devido valor, fosse pelo que fosse. queria ter sido mais gentil, ter-lhe dado mais carinho, ter percebido mais o bebé que ela era, como percebi antes, há 10 anos, quando o meu gato apareceu na minha vida, pequenino e orelhudo. temo ter perdido algo nestes anos todos e temo que essa falta de compreensão, empatia, compaixão e amor tenha ajudado a negar a existência a um bebé que era apenas um bebé. agora estamos de volta a uma sombra que envolve a casa e um peso que não sei como aliviar, num mundo que parece cada vez menos fazer sentido, com paredes que parecem cada vez mais avançar para perto e fechar-me num sítio de onde não sei como sair, escuro e sem esperança. tomara saber que caminho tomar e como honrar a memória de serzinhos que trouxeram tanta alegria e que não deviam ter desaparecido tão cedo. mas ainda não sei, e por agora é só isso.